Como seria se não existisse o passado? Viver um dia de cada vez, como se fosse o último, como se fosse o único, como se nada mais importasse. De tudo, de todas as maneiras, de todos os lados. O de dentro, o de fora, ao seu lado, como se não existisse passado. Conjugar os verbos seria bem menos doloroso. Não haveria o “já amou”, tão pouco o “já sorriu”. Apenas saudade, lembrança, aperto no peito e vazio na mente. Ninguém entende. Se o sentimento é uma linda estrada com face para o dia é justamente porque este caminho é íngreme.
Se for pra não entender, prefiro ficar cego. Não quero mais enxergar aquela pele, aquele rosto, daquele mesmo jeito carinhoso e feliz de sempre, mesmo que a felicidade não parta mais de mim, mesmo que não haja mais felicidade em mim, pois esta só existe porque eu tenho uma história pra contar, a mais linda história de amor que ninguém ouvirá. O mais lindo filme, protagonizado por mim, que jamais alguém assistirá. Se disser, ninguém acreditará, entretanto.
Agora, o presente que ganho deste presente frio e completamente envolvente com fumaça densa e névoa de inverno é o abraço da vida. Cada dia um novo par, uma nova nota. Meu cálice já não me embriaga mais, mesmo após tantas e tantas doses de vinho tinto com cor de sangue, com cor de dor. E o “Calix meus inebrians” escrito na pele com tinta preta, cor de tristeza e solidão, não diz mais nada. O castigo maior é já se acostumar a esquecer da dor em outros braços, outros cálices, e não se esquecer de que ainda tenho coração.
Gostaria de não tê-lo, confesso. Contudo, não posso arrancar minha própria alma de seu destino que é vagar a solta, sem voltar pra casa, procurando uma nova razão para voltar a flutuar e voltar a ser feliz. Voltar ao passado para, talvez, descobrir que pra quem sabe olhar pra trás, não há ruas sem saídas. Retroceder. Reconhecer que o passado já não importa e começar uma nova linda estrada ao partir daqui.
Somente o instante em que me embriago com tantas palavras de inconstantes sensações, eu percebo que no passado de ontem estive no mesmo lugar duas vezes. Exatamente no mesmo boteco, na mesma calçada, numa noite igualmente estrelada. O ontem que vivi sem ser entorpecido pelo amor, frio e sereno. O ontem em que o único vermelho que me restou foi o batom daquela boca em meu pescoço, já lavado, já esquecido, como se não houvesse passado.
A outra vez em que vivi, contudo, ainda fica preso a mim, como um anel, como um amuleto. E o cálice me embriagou com o vermelho do vinho, com o vermelho da carta. Com o vermelho de uma vida que foi conjugada no verbo “existiu” e que não existe mais.
A outra vez em que vivi, contudo, ainda fica preso a mim, como um anel, como um amuleto. E o cálice me embriagou com o vermelho do vinho, com o vermelho da carta. Com o vermelho de uma vida que foi conjugada no verbo “existiu” e que não existe mais.
Pense o que você quiser. (Y)