terça-feira, agosto 23

Ponto de partida.

Eu pus, passo à passo, milhões de milhas sob meus calcanhares. Enfrentei chuvas e tempestades, mas também tive o prazer de ver inúmeras vezes o sol se pôr. Incontáveis foram as vezes em que me decompus, dilacerando-me com as chacoalhadas dadas por este liquidificador chamado vida. Recompondo-me, peça por peça, usando a pouca cola chamada esperança que tinha guardada, e que ainda não se acabou para que eu possa me colar, caso precise, até o fim da minha vida.
Um dicionário de questões, frases prontas, sem respostas, simultaneamente. Dentre essas afirmações, fica aquela que diz que o mundo sempre gira e volta para o mesmo lugar. Vão-se as estações, mas elas sempre retornam. Foi naquele rigoroso inverno, lembro muito bem, que decidi começar a caminhar. Pegar minha mochila e partir pr'além mar. Desbravar o desconhecido e chamá-lo de lar. Esquecer tudo o que deixei, tudo o que me deixou. Imaginar que o horizonte é uma cachoeira e que eu cairia num abismo sem fim quando o fim chegasse. Navegando às cegas, sem a Estrela que guiava os passos do meu coração.
Vaguei desordenadamente, infeliz, infelizmente. Conheci e experimentei todas as coisas mais banais que o mundo pode oferecer. Comi farelo com porcos, dormi de cabeça para baixo com morcegos. Fui chacoalhado, dilacerado, tentando esquecer a dor que é não enxergar. Se for pra ficar cego, prefiro que seja pela luz do que pela escuridão. Contudo, nem sempre o que queremos é o que conseguimos. No escuro fiquei, sem ao menos uma estrela para me guiar.
Na escuridão eu meditei. Preso nessa solitária cela de um corpo fechado, sem janela e nem porta neste quarto, pude perceber e compreender que cada passo que eu dei não foi em vão, mas não me levou à lugar nenhum. Salvo e são, quando um fio de luz surgiu dentro de mim e eu encontrei minha prórpia cola, para me recompor mais uma vez. Primavera, verão, outono e inverno novamente. Descobri que dentro de mim posso fazer sempre verão em todas as estações, posso caminhar com destino, para o ponto de partida, naquele inverno que me lembro bem. O ponto em que parei minha vida, achando que estaria começando-a.
O ponto onde eu perdi os meus passos foi justamente o mesmo em que eu reencontrei-os.



Pense o que você quiser. (Y)

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